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Vozes em mim
Naýra Albuquerque
Argumento de Curta-Metragem
A cineasta negra Mariani se prepara para participar de uma live sobre cinema gaúcho. Ela combina diversas sonoridades, cores e materiais que criam um campo de proteção para seu corpo e alma. Durante a live realizada junto a cineastas brancos, um momento já previsto por Mariani acontece: os convidados destilam falas eurocentradas e racistas. Até que o som de Nina Simone que toca em sua sala, se confunde com as vozes ancestrais africanas e a voz de Conceição Evaristo que vivem em sua memória, criando um impulso flamejante de transe e resistência em Mariani, cuja força é sentida por outra jovem cineasta negra, que assistia à live do outro lado do Brasil.
"Vozes em Mim"
Inspirado no poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo
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"São quase 21:00. Ao som de Nina Simone, Mariani varre a sala com sofá colorido, colagens e quadros de artistes afroindígenas encostados nas paredes, plantas e uma fonte de água com pedras que inunda a sala com som suave e contínuo. Mariani abre as janelas, posta uma cadeira no centro da sala, puxa uma mesa montável para cima do tapete de retalhos, testa um tripé pro celular, sente, se vê, revê, mas decide usar o notebook mesmo. Na área externa do notebook podemos ver uma colagem com meninos negros em torno da palavra: PODER1.
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Decidida a posição do notebook, ela segue por uma das portas apartamento, não sem antes voltar alguns passos, colocar um cristal preto (ônix) em cima da prateleira e aumentar bastante o som da caixinha de som, que se confunde com o som da fonte de água. Mariani entra no banheiro um tanto ansiosa, o que sentimos pelos lábios e o som do coração, mas se move devagar, cheira essência ylang ylang, toma um breve banho enquanto Nina Simone canta cada vez mais alto. No banho, Mariani parece chorar, mas está sorrindo, é a música que aemociona.
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A mesma música ecoa no AP pequenino e iluminado com 3 abajures de luzes coloridas, que dão um ar de videoclipe pra casa. Mariani veste um casaco vermelho escolhido entre muitos casacos de cores escuras. Vermelho para um dia gelado. Põe água quente para uma xícara de chá, feito de folha da erva alecrim do campo, colhida no jarrinho próximo à pia da cozinha. Mariani pega alguns talos e joga na xícara, e a fumaça surreal que sai de uma só xícara, inunda a cozinha em névoa branca. Andando e dançando pela névoa colorida porluzes verdes, amarelas e laranjas vindas das luminárias na sala, Mariani se aproxima da sacada e come algumas floresdos jarrinhos do jardim.
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Começa o AO VIVO. Estamos dentro da live, Mariani entra. Entram no ar mais 4 cineastas gaúchos brancos muito bem dispostos à entrevista, todos 4 estão se sentindo em em casa, satisfeitos com o encontro entre antigos amigos, coisa que há tempos não acontecia, e conversam rapidamente em seu circuito de 4 pessoas sobre saudades de um tempo bom do cinema gaúcho. Álan, mediador da live inicia o debate, primeiro, os homens começaram a destilar cinefilia a filmes europeus, bajulando sua estética, linguagem, temas, sabemosque são cineastas, mas eles não falam sobre seus próprios filmes, falam sobre “como são belos os nossos filmes europeus”, e as mulheres os seguem fazendo análises cinematográficas a movimentos cinematográficos europeus comoprincipal referência para seus trabalhos.
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Com sua xícara, senta-se em frente ao computador na sala, é o início de um clima encantado e risadas em conversas de whatsapp. O chá em clima frio aquece o ambiente com uma fumaça incessante, o que deixa a sala com luzes leitosas. Bambus, portas azuis e plantas folhosas vibram num verde tão 1 Colagem de Kerol Kemblin intenso que elevam o volume do som. O telefone toca e, num rompante, Mariani finaliza o clima bom com um só movimento: atende a ligação. E abaixa drasticamente o som.
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É Álan, um homem branco, um colega de cinema que alerta Mariani com muita educação e um tanto de bajulação que iniciaria a live naquele instante. Ela amável, estava pronta e consentiu. Abaixa ainda mais o som de Nina Simone, que continua ao fundo ao ponto de só ouvirmos os sussurros e o instrumental.
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Fora da live, observamos o AP de Mariani e o clima de tédio, seus pés calçados em meias coloridas e chinelos a se debaterem rapidamente, inquietos. Observamos todos os outros pés das pessoas que participam da live. Muito brancos. Pés descansados em chinelos, meias, alguns cruzados para trás, acima computadores, águas e vinhos, passamos muito rapidamente por grandes estantes de livros, algum requinte, mas muita sujeira, copos no chão, papéis, comida antiga, bagunça em suas casas, câmeras super 8, antiguidades. A casa de Alan, só é vista pela janela da live, de onde o vemos e ao fundo sua bela bandeira Anti-fascista. Na casa de Mariani, há o útil para estar numa sala: sofá, tapete, muitas plantas e ao lado delas a mini fonte de água, composta por pedras amarelas, douradas e laranjas, que sempre traz o som de água em movimento ao fundo, somado à voz de Nina Simone a sussurrar.
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De repente, a atenção de Mariani é puxada de seu estado de tédio para a fala de uma das cineastas, que em tom brincalhão afirma que não conseguiria fazer um filme de Senzala, visto que não era a sua realidade, pois sua descendência é gaúcha e europeia. Quase todas as cabeças balançam em afirmativa. E ela continua a justificar suas escolhas eurocentradas. A normalidade continua. Enquanto o mediador parece apenas tristonho.
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De repente, o tempo vira outro, parece esticado com a voz racista cada vez mais distorcida, enquanto a expressão de Mariani na janela da live é de quem está “sem graça”. O som instrumental de Nina Simone começa a tocar mais alto, mas já não compreendemos a sua voz como sua, o que ouvimos bem é uma voz que fala palavras em iorubá “Oraieieiô”, “Epá hei, Oyá”, logo esta voz se confunde com a fala forte de Conceição Evaristo, que recita decepcionada: - “A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome” e no tempo que dura esta frase, o som vai se transmutando na expressão de Mariani que aos poucos ferve de indignação e tristeza ao mesmo tempo, que com o som no “mute” continua junto à voz de Conceição Evaristo: - “A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes, recolhe em si, as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas”. É quando ela pede a palavra para afirmar que só quem faz filme de Senzala é a própria Casa Grande, e à medida que ela expõe seus argumentos, sua voz emocionada, embargada, confunde-se com as batidas mais altas do som de Nina Simone e com a voz de Conceição Evaristo, e em plena argumentação, Mariani recita junto a elas: - “A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato”. A fumaça toma ainda mais conta do ar e invade todas as casas dos participantes da live, um clima de falta de ar toma de engasgo todas as vozes da live, o jazz ao fundo, voltamos para dentro de live, ao mesmo tempo que os entrevistados engasgam, eles sorriem tomando vinhos. E Mariani já está em estado de transe, pois recebe várias vozes em si.
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Uma garota negra acompanha a live em seu quarto, olhando para todos os cantos da tela, atônita com a situação que estava acontecendo ao vivo. Agora o espaço é outro, um quarto escuro, onde ecoa alto apenas o som das vozes de Nina Simone, Conceição Evaristo e das ancestrais iorubás que só Mariani parecia escutar. Há um tripé montado com uma led que ilumina uma cama com uma mochila aberta, câmeras e gravadores de áudio jogados, é uma jovem cineasta. Logo vemos algumas plantas próximas ao teclado de um computador e belas caixas de som, as mãos negras de uma jovem moça, perplexas, seu rosto perplexo, observa a live acontecer, e os sons em iorubá, Nina Simone, Conceição, Mariani, a água e fumaça tomam o quarto da espectadora.
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Conceição gradativamente sai do som, Nina gradativamente sai do som, as vozes em iorubá gradativamente saem do som, a voz de Mariani também sai até que só a garota diz veemente, entre o transe e o ódio: “Na voz da minha filha se fará ouvir a ressonância. O eco da vida-liberdade.”
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Até que todas as vozes juntas numa mixagem agradável, formam uma música só, e a garota, já em transe, ouve e recita, ritmada às vozes: - “O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha...”